Por Adão Paiani,
Conhecida nos meios jurídicos, a lenda do moleiro de Sans-soussi, diz que, em meados do século XVIII, o rei prussiano Frederico II, descontente com a existência de um velho moinho que comprometia a visão da bela paisagem que cercava um de seus palácios, decidiu mandar derruba-lo. O dono do moinho, homem humilde, não cedeu à pressão do rei e impediu que isso acontecesse. Inconformado, o soberano confrontou o homem dizendo que ele era o rei, que poderia prendê-lo ou confiscar sua propriedade, ou as duas coisas, ou pior, se quisesse, não fosse obedecida sua ordem; ao que o cidadão respondeu, com a confiança das almas simples: “ainda há juizes em Berlim”. Não sabia, naquele momento, se poderia ganhar a causa, mas na sua simplicidade, acreditava na justiça.
A nota da Federação Anarquista do Rio Grande do Sul denunciando ter a polícia civil gaúcha ingressado na sede da Entidade, em Porto Alegre, e em um segundo endereço desta; na região metropolitana, na tarde de quinta-feira (29); e lá aprendido material de divulgação política, com denúncias de corrupção no Governo Estadual; poderia ser mais um de tantos episódios vergonhosos que temos assistido nos últimos tempos. Mas é pior que isso.
Não se trata de identificação com o ideário anarquista, embora sua longa tradição histórica de lutas libertárias mereça nosso respeito. Voltaire teria dito “não concordo com uma palavra do que dizes, mas defenderei até o ultimo instante seu direito de dizê-la”. Não pode pensar diferente quem acredita na democracia.
Trata-se de defendermos nossa frágil ordem democrática, recém saída de nosso último período ditatorial; afinal um quarto de século na história é nada; ante tamanha barbaridade cometida em cumprimento a um mandado judicial; e acreditamos que tenha havido tal mandado, pois é difícil crer que a sensação de impunidade de um grupo político e seus sicários tenha chegado a tal ponto que, em uma situação dessas, tenha agido manu militari, ao total arrepio da lei; mas isso dá ainda maior gravidade ao fato. Eles tinham mandado!
E tendo esse mandado judicial sido dado no âmbito de uma ação movida pela Governadora do Estado contra a Entidade, por injúria, calúnia e difamação; prestou-se ele a apreender, além do material que, teoricamente, teria a ver com a postulação da litigante; outros de divulgação política, livros e documentos diversos, alheios ao objeto da ação; tendo ainda resultado na condução de integrantes da Federação a prestar depoimento na 17ª. Delegacia de Polícia. Em que ano estamos mesmo? Só faltou atirarem a papelada pelas janelas e queimarem no meio da rua. Já vimos isso em algum lugar.
A propósito, a citada distrital ficou conhecida por acumular milhares de inquéritos policiais; muitos deles há mais de uma década, sem solução, em razão da sua precariedade estrutural. Mas já devem ter sido todos concluídos, sobrando tempo para ser uma nova especializada, atuando contra quem se insurge contra o atual governo.
Mesmo não conhecendo o processo, fica difícil entender o que leva um Juiz, em plena vigência de um Estado Democrático de Direito, determinar medida dessa natureza. E quando sob uma das partes pesam graves e devastadoras denúncias ainda não esclarecidas.
Prendam a vítima e soltem o meliante.
Uma decisão dessas soa como total inversão de valores, e não ajuda ao cidadão acreditar na seriedade e efetividade da justiça. Espera-se que o livre convencimento do Juiz tenha mínima coerência com a realidade dos fatos. E a realidade que ninguém mais ignora é o papel desempenhado pela atual mandatária e da societas delinquentium naquilo que se transformou o Estado.
Nessa altura do campeonato qualquer decisão envolvendo esses fatos precisa observar um mínimo de prudência para que, na intenção legítima de se salvaguardar um direito, não se acabe dando salvo-conduto para quem ainda nem começou a acertar suas contas com a lei e com a sociedade.
Todos são atingidos por uma decisão dessas; inacreditavelmente editada em um Estado democrático; mesmo amparada legalmente. Agora foram os anarquistas, amanhã serão os comunistas; depois os trabalhistas, socialistas, liberais, dirigentes sindicais.
E, nessa toada, logo lhes farão companhia procuradores federais, promotores de justiça, advogados, juizes, delegados. E quem ouse desafiar e apontar os crimes de quem talvez creia ser uma nova versão de Frederico II. Com castelo e tudo.
Se cada vez menos temos a convicção do moleiro de Sans-soussi, mais importante se torna não nos calarmos frente a esse tipo de atrocidade cívica. Antes que tenhamos a voz arrancada da garganta e a democracia pisoteada e ultrajada, bem em nossa frente.
Com mandado judicial.