terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

Boaventura de Souza Santos: "Promover mídias alternativas e densificar as redes entre elas vai ser uma das grandes prioridades da década"


"...num contexto em que as grandes mídias se tornaram em todo o mundo o grande partido da oposição conservadora e, muitas vezes, antidemocrática. Promover as mídias alternativas e densificar as redes entre elas vai ser uma das grandes prioridades da década".

Boaventura de Sousa Santos é um dos principais intelectuais da área de Ciências Sociais com mérito internacionalmente reconhecido. Nascido em Coimbra, em 15 de novembro de 1940, tem Doutorado em Sociologia do Direito pela Universidade de Yale (1973). Na atualidade, é professor Catedrático da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, Distinguished Legal Scholar da Universidade de Wisconsin-Madison e Global Legal Scholar da Universidade de Warwick.

Em entrevista exclusiva ao Jornal João de Barro da Associação de Pessoal da Caixa Econômica Federal - APCEF/RS, Boaventura de Sousa Santos falou das perspectivas do Fórum Social Mundial e das linhas que deveriam orienta-lo a partir de 2010. Leia a seguir alguns dos principais trechos:

Antes de mais nada, não é correto imaginar transformações profundas no curto prazo em resultado da atual crise financeira, econômica, energética e ambiental, apesar de o simples acúmulo das crises ser significativo. Os movimentos e organizações do FSM têm hoje uma experiência social enorme que os faz analisar com alguma reserva todos anúncios de crises finais do capitalismo.

O capitalismo tem uma capacidade enorme de regeneração. Como vimos recentemente, os mais furiosos adeptos do neoliberalismo nem sequer pestanejaram para aceitar a mão do Estado na resolução da crise, o que por vezes envolveu nacionalizações, a palavra maldita dos últimos 30 anos. Por isso, o FSM e todas as novas formas de ativismo global que resultarem dele vão aprofundar as suas agendas tendo em mente esse realismo na base do qual podem construir novos radicalismos.

O balanço da década do FSM deve ser orientado para o futuro, e não para nos flagelarmos com análises críticas do passado. Em meu entender, as perspectivas de futuro deveriam alinhar-se pelas seguintes ideias:

A mundialização real do FSM.

Em retrospecto, o FSM da última década foi, sobretudo, um Fórum Social Latinoamericano. Foi neste continente que a ideia do FSM cativou verdadeiramente a imaginação dos movimentos sociais e se transformou numa fonte autônoma de energia contra a opressão e a dominação. Essa fertilização do inconformismo teve repercussões muito para além do FSM, nos processos políticos que tiveram lugar em muitos países do continente.

Em nenhum outro continente temos hoje um conjunto tão vasto de países com governos progressistas e com formas tão intensas de articulação política entre eles apesar das muitas diferenças que os separam. Está a emergir uma consciência continental, mais de um século depois de o grande José Marti a ter preconizado como Nuestra América. É uma consciência difusa, mas tem como ideias centrais a recusa militante da ideia imperial da América Latina como quintal dos EUA e a reivindicação de formas de cooperação econômica e política que se pautam por princípios de solidariedade e reciprocidade, alternativos aos que subjazem aos tratados de livre-comércio.

E esta consciência, longe de ser um monopólio de estadistas, está hoje presente nas fortes articulações continentais entre movimentos sociais e começa a germinar nas identidades dos cidadãos do continente. É disso sinal a criação da cidadania latino-americana proposta pela nova Constituição do Equador. Nada disto ocorre em outros continentes e é mesmo problemático se a unidade “continente” vale da mesma maneira em todos os casos.

Na África há um forte movimento de integração regional, mas a sua orientação política é, por enquanto, uma incógnita. Acresce que os movimentos sociais e as organizações africanas estão muito distantes deste processo. É, por isso, de salientar a importância de o próximo FSM se realizar em Dakar. Apesar de algumas das melhores reflexões sobre a globalização alternativa ser originária da Ásia, o processo do FSM só teve alguma implantação na Índia e mesmo aí teve dificuldade em autonomizar-se em relação às identidades partidárias.

A Europa, hoje dominada por governos conservadores, tem um forte projeto de integração regional que mais e mais se afasta dos cidadãos e das organizações sociais. Esta derivação autoritária contribuiu para a marginalização da Europa na recente Conferência da ONU sobre a mudança climática realizada em Copenhague em dezembro passado.

Finalmente, os movimentos e organizações do subcontinente da América do Norte nunca souberam ou quiseram trazer o FSM para casa apesar de contribuírem para o processo do FSM noutros espaços. O primeiro FSM nos Estados Unidos só se realizou em 2007 e é grande a expectativa a respeito do próximo que se realizará de 22 a 26 de junho deste ano em Detroit. Para ser sustentável na década que agora entra, o FSM tem de fazer um esforço enorme - através dos movimentos e organizações que já o integram - no sentido de densificar a sua presença nos diferentes continentes.

A África, a Ásia e a Europa parecem-me ser as grandes prioridades. Não vai ser fácil, não só porque o FSM reflete internamente as desigualdades sociais do mundo (as desigualdades entre as capacidades organizativas contra a opressão e a dominação das diferentes regiões do mundo), como também porque o imperialismo encontrou no pretexto da luta contra o terrorismo novas armas para impedir a organização, a privacidade, a mobilização e a mobilidade dos ativistas militantes contra a injustiça social e por um outro mundo possível.

Democracia interna e deliberação política.

Algumas vozes críticas do processo do FSM têm levantado frequentemente a questão da democracia interna da estrutura organizativa do FSM. Francamente, nunca pensei que esse fosse um problema sério, tendo em vista o insanável problema da representatividade dos movimentos e organizações que decidiram integrar o FSM. Aliás, ao longo dos anos fui observando as muitas iniciativas tomadas, sobretudo ao nível do Conselho Internacional, para acolher as propostas no sentido de aumentar a democraticidade interna. Por isso, quando falo de democracia interna e deliberação política, tenho em mente outro problema: o não se aproveitar a rede dos movimentos e organizações que integram o FSM e as reuniões mundiais, regionais, nacionais e locais para fazer exercícios de democracia participativa, referendária, consultiva ou deliberativa, sobre grandes questões que afetam o mundo, sobre propostas de reflexão e de ação que mobilizam os movimentos e sobre as quais há diferentes opiniões.

Confesso que, sem grande sucesso, tenho vindo a propor tais exercícios como embriões de processos deliberativos que amanhã podem estar na origem de ações coletivas de âmbito global que, pela sua envergadura e pelo seu impacto, tornem o FSM mais relevante para os próprios movimentos e organizações que o integram e dem aos militantes um novo sentido e uma nova utilidade à pertença ao FSM. Penso que um dos desafios do FSM vai ser o de dar mais conteúdo político à sua existência e este objetivo, na lógica do próprio FSM, só pode realizar-se por formas de democracia radical, representativa pela qualidade do envolvimento, e não pela quantidade das bases estatísticas, que abranja os militantes de base, e não apenas as cúpulas ou lideranças que frequentam as reuniões do FSM. Será também uma forma de dar mais espaço político a movimentos e organizações assentes na militância de base em detrimento das organizações sem membros, por vezes bem financiadas, com agendas pouco transparentes e com prestações de contas orientadas para os doadores/financiadores, e não para os públicos que dizem servir. Esse novo conteúdo político deverá abranger duas áreas principais que menciono a seguir.

Pensamento solidamente crítico e propositivo.

O FSM não é sustentável na década que agora se inicia se a sua voz, mesmo que plural, não se ouvir sobre os problemas que afligem o mundo. Essa voz tem de se ouvir antes de mais junto dos militantes dos movimentos e organizações que o integram, mas deve ouvir-se também junto da opinião pública. Este desafio desdobra-se em dois.

Por um lado, vai ser necessário imaginar redes de movimentos e organizações com suficiente massa crítica para dar resposta a questões e temas concretos cuja análise seja recomendada pelos mecanismos de democracia participativa que referi. Não se compreende, por exemplo, que o FSM não tenha tido uma voz (ou mesmo um conjunto de vozes estruturadas) sobre a reforma da ONU, sobre a mudança climática ou sobre a guerra infinita contra o terrorismo que amanhã será uma guerra contra todos nós que nos inconformamos ativamente ante as injustiças instaladas.

O segundo desafio é o da comunicação e informação num contexto em que as grandes mídias se tornaram em todo o mundo o grande partido da oposição conservadora e, muitas vezes, antidemocrática. Promover as mídias alternativas e densificar as redes entre elas vai ser uma das grandes prioridades da década.

Ações coletivas e novas internacionais.

Os mesmos processos de democracia participativa vão ter de ser utilizados para decidir tipos de ação coletiva que, à falta de melhor nome, poderíamos chamar de guerrilha pacífica, sincronizada e multissituada tendo o mundo como o horizonte das formas locais e nacionais e regionais de intervenção. Em seu conjunto, tal estratégia visará a tornar o mundo menos confortável para a dominação capitalista, colonial, sexista e antiambiental. Mas como já aconteceu na década passada, a relevância do FSM vai se revelar em iniciativas que não têm diretamente a ver com o FSM, mas que seriam impensáveis ou impossíveis sem a existência dele.

Em tempos recentes, têm surgido várias propostas no sentido de tornar o movimento da globalização alternativa mais afirmativo e vinculativo em termos de iniciativas mundiais. Algumas delas confinam-se aos movimentos e organizações sociais. É o caso da proposta recentemente feita pelo vice-presidente da Bolívia, o grande intelectual-ativistagovernante Álvaro Garcia Liñera, de se criar uma Internacional dos Movimentos Sociais. Outras propostas visam a superar a divisão entre movimentos e partidos progressistas. É o caso da proposta, também recente, do presidente da Venezuela, Hugo Chávez, de se criar a Quinta Internacional, congregando os partidos de esquerda em nível mundial.

Nenhum comentário:

Seguidores

Direito de Resposta do Brizola na Globo