Temos de superar o velho desenvolvimento que admitia o avanço social como consequência natural do crescimento econômico
Em 2003, todos auguravam um desastre para a economia brasileira, mas o que se observou foi a progressiva aceleração do crescimento do PIB num ambiente de baixa inflação. À sombra de uma política monetária bastante conservadora, o País executou uma política fiscal prudente e uma estratégia de acumulação de reservas, construindo defesas sólidas para prevenir os efeitos da crise. Isto foi proporcionado, já dissemos, por uma conjuntura internacional excepcionalmente favorável.
Nesse ambiente benfazejo, a política monetária do governo Lula manteve a taxa de juros e o câmbio fora do lugar. Criou-se uma situação do tipo “há bens que vêm para o mal”, ou seja, o câmbio valorizado era compensado pelos preços generosos formados num mercado mundial superaquecido e especulado.
Nessas condições, seria não só desejável, mas obrigatório, buscar uma combinação câmbio-juro real mais estimulante para a substituição de importações, o avanço das exportações nos segmentos de maior intensidade tecnológica e para o investimento em novos setores, mais dinâmicos.
O crescimento da indústria é almejado porque impõe a diversificação produtiva e torna mais densas as relações intrassetoriais e intersetoriais, proporcionando, ao mesmo tempo, ganhos no comércio exterior e na economia doméstica. Esta façanha exige a elevação da taxa de investimento da economia dos atuais 20% para 25% do PIB. Mas isto não vai cair do céu.
Em vez de papagaiadas ideológicas, o pragmatismo chinês tratou de compreender a natureza das forças que movem hoje as transformações do capitalismo. Sabem, ademais, que vivem em um mundo em que prevalece a assimetria de poder, não só político, mas econômico. A liberdade de gestão monetária capaz de promover a estabilidade do câmbio e dos juros depende, numa economia emergente de alto crescimento, da acumulação de reservas. Por sua vez, a acumulação de reservas, sem danos fiscais, só pode ocorrer com taxas de juro baixas. Esta é a regra do jogo hoje.
Em 2008, o Brasil sofreu uma crise de confiança que se manifestou no encolhimento da liquidez no mercado interbancário e travou o crédito para empresas e consumidores. Isso impactou rapidamente o setor privado, que cortou drasticamente a produção corrente e, sobretudo, reduziu os gastos de investimento.
Não há dúvida de que o Brasil foi beneficiado pelo comportamento dos commodities, cujos preços não sofreram perdas consideráveis, como em outras ocasiões. O Brasil desvencilhou-se da crise porque o governo estava preparado e adotou as medidas anticíclicas corretas quando sobreveio a tormenta. O governo brasileiro reagiu com competência ao impacto da crise de 2007-2008. A ação das autoridades e dos bancos públicos foi decisiva para reabilitar o crédito, sobretudo mediante a compra de carteiras das instituições de porte médio e da ação tempestiva do BNDES na sustentação do crescimento do funding de longo prazo.
Mas essa foi uma ação conjuntural. Quais são os trabalhos a longo prazo? O Brasil sofreu perdas na composição de muitas cadeias industriais, como eletroeletrônica, bens de capital e farmacêutica. Os otimistas argumentam que, ainda assim, o País preservou uma fração importante do aparato industrial e, sobretudo, valeu-se do dinamismo do agronegócio, que respondeu muito rapidamente às transformações ocorridas na divisã-o internacional do trabalho.
A ascensão econômica da China e dos asiáticos em geral, com dotações de recursos naturais diferentes da nossa, mudou a configuração do comércio internacional.
A despeito dos benefícios, a nossa relação com a China, a exemplo, começou a ficar assimétrica: tornamo-nos fornecedores de commodities, dada a nossa grande e diversificada disponibilidade de recursos naturais, e começamos a perder espaç-o na esfera industrial, perder participação nos terceiros mercados, permitindo, ademais, um crescimento das importações que denotam a substituição perigosa da produção doméstica.
Está na hora de estabelecer critérios nas negociações que reequilibrem essa relação, pois não é possível um país de 200 milhões de habitantes sofrer uma perda industrial por conta de uma integração produtiva e comercial imprópria.
Alguém me perguntou outro dia o que o Brasil pretende do seu desenvolvimento. Vou falar, em primeiro lugar, da infraestrutura. Estamos diante de um binômio transporte-energia que não utiliza racionalmente nossa constelação de recursos e a distribuição espacial das atividades, cada vez mais descentralizada.. O modelo da “automobilização” não tem futuro – nem mesmo com o carro elétrico –, porque sua reprodução tornará ainda mais dolorosa a vida urbana. O modelo também é inviável para o transporte de longa distância.
Mais importante do que a infraestrutura é definir o destino que pretendemos dar ao sistema educacional brasileiro, ao caminho que oferecemos aos cidadãos, do ensino básico ao superior. Não se trata apenas de abastecer adequadamente o mercado de trabalho. É importante, sim, formar mais técnicos e engenheiros, carreiras desestimuladas pelo baixo crescimento das últimas décadas. Mas, antes de tudo, é preciso conter a degradação que está ocorrendo em todos os níveis da educação no Brasil: a especialização precoce, em detrimento da formação cultural mais ampla e mais sólida, capaz de permitir a autonomia e a fruição da liberdade pelo cidadão. Pois não se forma um bom engenheiro se o profissional não tem noção do País onde vive, do mundo onde sobrevive.
Na verdade, está-se produzindo hoje, desculpem a expressão, uma geração de idiots savants, que se especializam no seu ramo de atividade e não têm a menor noção do mundo onde vivem. Comentei numa entrevista: basta acompanhar o que você lê na internet. É assustador. Isso demanda maior empenho, sobretudo das camadas “esclarecidas” da sociedade civil, na construção de uma política cultural compatível com a democracia de massas.
Assim, a infraestrutura, a educação formal e a política cultural são as três questões fundamentais. Temos de superar o velho desenvolvimentismo que admitia o avanço social e cultural como consequência natural do desenvolvimento econômico e nos perguntar: que sociedade desejamos? Os grandes autores perscrutaram a história para responder a questão: o que somos nós, os brasileiros? É hora de perguntar: que sociedade queremos?
Quando me refiro a uma política cultural, estou falando de uma integração do indivíduo, dos grupos sociais ao mundo contemporâneo; saber, afinal de contas, quais são os valores que queremos preservar. Imagino que sejam os mesmos que a modernidade colocou como um desafio para a nossa ação política: a liberdade, a igualdade e a compreensão.
O que estamos assistindo, hoje, desgraçadamente, no mundo inteiro e acho que no Brasil com mais intensidade, é um processo de obscurecimento, e nesse particula-r tem enorme importância o que queremos dos meios de comunicação de massa. Hoje em dia você tem um grande debate travado em torno da liberdade de expressão. A mídia, a grande mídia, sob a consigna da liberdade de expressão trata de impedir que se desenvolva o verdadeiro debate sobre o Brasil ou sobre os temas que afligem a humanidade. Contra esse controle, temos de lutar pela diversidade. Promover a diversidade é uma obrigação das políticas públicas: não deixar que o poder da informação, concentrado em poucas empresas, se transforme em censura da opinião alheia. Porque a internet ainda é uma caixa de ressonância da grande imprensa: os blogs e quejandos, em sua maioria, reproduzem o que a grande imprensa diz, na forma e no conteúdo, porque estão com a consciência crítica danificada.
O projeto da liberdade não pode, como dizia Adorno, se separar da questão da compreensão, do entendimento, da crítica e da capacidade de se formular projetos. E isso está bloqueado hoje, no Brasil, por conta da banalização da vida e da celebração das celebridades. Tudo está sendo feito para que a sociedade se transforme em uma massa amorfa que não tem papel nenhum a desempenhar na projeção de seu próprio destino.
Por Luiz Gonzaga Belluzzo - Publicado na página da Revista Carta Capital.
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