sábado, 22 de agosto de 2009

Adão Paiani: "Temos um corpo"


Fotos divulgadas pelo MST do corpo do integrante do movimento assassinado na Fazenda Southal.

O advogado Adão Paiani, Ex-Ouvidor-Geral da Segurança Pública e Ex-Ouvidor Agrário do Estado, comenta o trágico acontecimento e a responsabilidade da política de segurança pública do governo do Estado:

TEMOS UM CORPO

O assassinato de um trabalhador rural sem terra, na manhã desta sexta-feira (21), na ação de desocupação de área pertencente à Fazenda Southal, em São Gabriel, interior do Estado Gaúcho, é mais um cadáver colocado no colo da Governadora Yeda Rorato Crusius; agora não por um episódio mal explicado envolvendo o conveniente suicídio de um ex-assessor de confiança, dias antes de um esclarecedor depoimento que daria ao Ministério Público Federal; mas o fruto de uma atuação desastrada, abusiva, irregular e infelizmente criminosa da Brigada Militar do Estado.

Quando todos pensavam que a morte anunciada ocorreria durante o Comando do controvertido Coronel Paulo Roberto Mendes Rodrigues, eis que ela ocorre na gestão de um oficial tido como um intelectual reconhecido por uma formação lastreada em cursos e estágios no exterior, e um conhecimento aparentemente profundo das questões que envolvem o respeito aos direitos humanos. Uma ironia dentro de uma tragédia há muito, como já disse, anunciada e que poderia ter sido evitada se não vivêssemos no Rio Grande, desde a eleição dessa figura que se mostrou a mais lamentável dirigente do Executivo em toda a História Riograndense, um clima de permanente confronto entre a estrutura estatal e seus representantes, com as demais forças sociais; e o embate e o desrespeito permanente como política de Estado.

São de conhecimento público minhas profundas divergências de ordem ideológica, conceitual e estratégica com o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, e as críticas ferozes com que sou brindado por seus dirigentes; algumas certamente justas, tenho de reconhecer, no constante processo de crítica e autocrítica com que busco conduzir minhas ações; mas outras injustas. Produtores rurais e trabalhadores do campo que buscam um pedaço de terra para poder produzir e viver com um mínimo de dignidade são ambos vítimas de uma estrutura agrária historicamente perversa e que precisa ser definitivamente modificada; algo que deveria ter ocorrido no Brasil há no mínimo 150 anos.

Mas se existe algo que procurei fazer em meus dois anos à frente da Ouvidoria-Geral da Segurança Pública e como Ouvidor Agrário do Estado; função criada por minha sugestão e que foi extinta com a minha saída, e que não acrescentava qualquer acréscimo de investimento ao Estado, em vencimentos ou estrutura operacional, às funções eu já desempenhava como Ouvidor de Polícia; foi servir como mediador em todas as operações demandadas pela Brigada Militar e que representassem risco de confronto com movimentos sociais. Agressões ocorridas, o foram em ocasiões em que não estava presente, como é o caso daquelas que vitimaram mulheres e crianças na desocupação da Fazenda da Stora Enzo, em Rosário do Sul. Na ocasião, a pedido da Ouvidoria Agrária Nacional, me desloquei até o local e, chegando após o conflito, só me restou assegurar assistência médica, água, comida e alojamento às vítimas; na ocasião com o inestimável apoio do prefeito socialista de Livramento, Wainer Viana.

Tenho a certeza de que minha presença constante impediu que ocorresse fato com a gravidade do de hoje. Em face da orientação seguida pelo meu sucessor, que acumula as funções de Ouvidor com a de subchefe jurídico da Casa Civil, essa presença de um agente do Estado, pronto a mediar conflitos, in loco, não ocorre mais.

Uma vida poderia ter sido poupada, se tivéssemos uma Ouvidoria atuante, eficiente, fiscalizadora e mediadora de conflitos como a que tentei criar e manter enquanto dentro da estrutura de governo, mas cuja continuidade foi impedida pela Governadora do Estado, responsável - juntamente com o alto comando da Brigada Militar, Comandante-Geral, Sub-Comandante-Geral e Chefe do Estado Maior e ainda, com o Secretário da Segurança Pública - por esse episódio desastroso, que mancha a Brigada Militar de uma forma lamentável e absolutamente desnecessária. E todo esse alto comando, em um país minimamente sério, deveria ser imediatamente afastado de suas funções.

Ao escrever este artigo, recebi informações que dão conta haver o homicídio sido praticado por um oficial da corporação, utilizando-se de armamento proibido em ações anti-motim, no caso, uma espingarda calibre 12, que somente pode ser utilizada com munição não letal. A bem da responsabilização objetiva do agente cabe imediatamente duas medidas: apreensão imediata de todo o armamento utilizado por todos os policiais partícipes da ação, sem exceção, e, o mais importante, apreensão das chamadas “cautelas das armas”, que são os recibos que todos os policiais, ao saírem em operação, precisam firmar e que se encontram no quartel de onde saíram. Isso vai evitar que a conta dessa morte seja debitada na conta de algum já sofrido soldado raso da corporação. Se isso não ocorrer imediatamente, é o que pode acontecer.

Durante minha atuação como Ouvidor, participei, a convite da Ouvidoria Agrária Nacional, da elaboração das Diretrizes Nacionais para Cumprimento de Mandados Judiciais que visassem à desocupação de áreas em conflito, e fui um dos seus signatários. A única Polícia Militar do Brasil que se recusou a assinar o referido documento foi a Brigada Militar. A observância dessas normas, visa, fundamentalmente, impedir que ações que busquem a garantia de direitos juridicamente tutelados não venham a desrespeitar outros de igual ou superior importância. Ou seja, não vale tudo para se cumprir uma ordem judicial, como ocorreu hoje em São Gabriel.

A recusa em se comprometer com o diálogo e a solução dos conflitos pelas vias pacíficas, representadas pelas Diretrizes Nacionais, mais do que uma decisão do Comando da Brigada Militar, à época, foi a tradução das posturas arrogantes, ditatoriais, criminosas e, ao fim e ao cabo, burras do Governo de Yeda Rorato Crusius; que deixará marcada sua trajetória lamentável à frente do Executivo gaúcho pelas suas condutas absolutamente desequilibradas e de constante confronto com toda a sociedade riograndense, na mais perfeita materialização do “L'État, c'est moi”; esquecendo-se, em seus delírios dantescos, de que estamos em uma República e no século XXI.

Temos, no colo da Governadora Yeda Crusius, um corpo, fruto de sua política de confronto. Resta a tristeza e a sensação de impotência de não termos podido evitar a perda de uma vida, sob todos os aspectos, valiosa. Quem salva uma vida, salva a humanidade inteira, diz o provérbio judaico. E hoje nós não conseguimos.

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