Por José Carlos de Assis publicando no Valor Econômico em 05/06/2009
Tomando emprestado o dinheiro parado nas empresas, por meio de títulos públicos, o Estado pode investi-los.
O imperativo da sobrevivência está impondo a todas as economias importantes do mundo a realização de grandes déficits públicos para salvar seus sistemas financeiros e estimular a demanda. É tempo, pois, de revisitar as teses acadêmicas segundo as quais o déficit, que leva a um aumento da dívida pública, deve ser evitado a todo o custo para não sobrecarregar as gerações futuras com as crescentes obrigações por conta de juros e de amortizações, e o risco de aumento de tributos.
Houve tempo, dos anos 70 para cá, em que economistas neoclássicos, depois chamados neoliberais, como os americanos Robert Lucas e Robert Barro, encantavam políticos conservadores de todo o mundo com suas teses de que o déficit público, mesmo em recessão, era fonte de desequilíbrios permanentes na economia e não funcionavam como estímulo à recuperação. Era melhor esperar e deixar que as livres forças do mercado promovessem o relançamento, que seria inevitável.
Vivíamos num mundo inocente, no qual ocorriam recessões periódicas e crises financeiras periódicas, mas nunca as duas juntas. Ou seja, pensava-se que estávamos vacinados contra crises globais do tipo da Grande Depressão. Vemos agora que não é bem assim. Uma crise de demanda sem a ocorrência simultânea de uma crise financeira pode ser revertida com adequadas políticas monetárias, mediante uma redução consistente da taxa de juros básica. Uma crise financeira podia ser revertida em sua própria órbita, sem comprometimento fiscal. As duas juntas não aconteciam desde os anos 30. O que é melhor fazer quando acontecem?
A melhor maneira de compreender isso é pela lente de um notável economista americano do século passado, Abba Lerner, autor da teoria das Finanças Funcionais. Lerner, embora keynesiano, abandonou a trilha das especulações de Keynes para explicar flutuações cíclicas na base de expectativas subjetivas dos empresários e seguiu o caminho da identificação de interações objetivas entre o setor privado e o setor público, tanto na esfera monetária e financeira quanto na esfera real, no sentido sobretudo de apontar o caminho da recuperação nas crises.
Uma crise de demanda, objetivamente, supõe elevados estoques e reduzida propensão a investir do empresariado. O investimento cai, mas não a disponibilidade de recursos por parte de muitas empresas. Elas tendem a entesourá-los sob alguma forma, em lugar de aplicar produtivamente. Em consequência, o desemprego aumenta, realimentando a queda da demanda. O sistema não tem como recuperar-se a partir de sua própria órbita, pois, para investir, é necessário haver um aumento esperado da demanda. E para a demanda aumentar, é preciso haver investimento.
Como ninguém é capaz de levantar-se do chão puxando-se pelo próprio cabelo, é preciso que haja a intervenção de uma força externa ao setor privado para empurrar uma economia em crise de demanda. Essa força é o Estado. Tomando emprestado o dinheiro parado nos caixas das empresas superavitárias, mediante o lançamento de títulos públicos, o Estado pode investi-los na compra de serviços públicos e de grandes obras públicas, criando empregos e estimulando a demanda, e, finalmente, incentivando o próprio investimento privado, fomentando um círculo virtuoso de emprego, demanda e investimento.
É de notar-se que, de um ponto de vista funcional, não basta um aumento do investimento público. É preciso que seja um investimento deficitário. Um investimento financiado por tributos estará retirando recursos do setor privado na mesma proporção em que os está injetando, sem efeito na demanda global. Portanto, o déficit público não é um "mal" tolerável, mas um recurso funcional necessário.
A consequência óbvia é o aumento da dívida pública. Em que medida isso representa uma carga insuportável para as gerações futuras? Em nada. A verdadeira carga insuportável recai sobre a geração presente na ausência do déficit, sob a forma de alta intolerável do desemprego e da queda da demanda. Além disso, vê-se o gasto público apenas do lado do passivo, não do ativo: obras de infraestrutura e serviços de educação e de saúde constituem uma base de produtividade e de bem-estar social para as gerações futuras, ao mesmo tempo em que aliviam os ônus da crise no presente.
Do ponto de vista financeiro, o déficit também se paga, desde que haja efetiva recuperação. Com o aumento do produto e da renda, a receita tributária se eleva sem aumento de carga, sendo que, do lado monetário, a expansão da economia requer expansão também de sua base, liberando receita de senhoriagem para o setor público. Tudo isso faz com que, em poucos anos de recuperação, o déficit se reduza ou seja eliminando, possibilitando gradual redução da dívida pública em relação ao PIB, numa atmosfera de crescimento auto-sustentável e sem ônus social.
Seria o caso de se pensar que todo déficit público deve ser encarado como bom para a economia? Claro que não. É preciso que ao déficit corresponda um gasto que eleve gradualmente a produtividade e a base de bem estar da sociedade. Além disso, ninguém de bom senso iria aprovar aumentos de dívida pública do tipo que aconteceu no governo Fernando Henrique, quando ela dobrou de cerca de 30% do PIB para quase 60%, sem qualquer investimento relevante em contrapartida. Esse foi um aumento criminoso da dívida, puxado exclusivamente por aumento de juros, além de paralelo a um dos mais amplos programas de privatização do planeta.
E o que dirão as agências de risco sobre um eventual aumento da dívida pública brasileira como consequência de um vigoroso programa de estímulo à demanda para enfrentar a crise? Bem, as agências ficarão muito ocupadas com a União Europeia, que está estourando todos os parâmetros do Tratado de Maastricht e do Pacto de Estabilidade e Crescimento que criou o euro (máximo de 3% do PIB do déficit e de 60% da dívida), com o Japão, cuja dívida vai para 205% do PIB, com a Inglaterra, com déficit de quase 10%, e com os próprios Estados Unidos (12,3% do PIB). Sem falar, obviamente, nos riscos que elas não viram no Lehman Brothers, no Bank of América e no Citi!
José Carlos de Assis é economista e professor, presidente do Instituto Desemprego Zero.
O imperativo da sobrevivência está impondo a todas as economias importantes do mundo a realização de grandes déficits públicos para salvar seus sistemas financeiros e estimular a demanda. É tempo, pois, de revisitar as teses acadêmicas segundo as quais o déficit, que leva a um aumento da dívida pública, deve ser evitado a todo o custo para não sobrecarregar as gerações futuras com as crescentes obrigações por conta de juros e de amortizações, e o risco de aumento de tributos.
Houve tempo, dos anos 70 para cá, em que economistas neoclássicos, depois chamados neoliberais, como os americanos Robert Lucas e Robert Barro, encantavam políticos conservadores de todo o mundo com suas teses de que o déficit público, mesmo em recessão, era fonte de desequilíbrios permanentes na economia e não funcionavam como estímulo à recuperação. Era melhor esperar e deixar que as livres forças do mercado promovessem o relançamento, que seria inevitável.
Vivíamos num mundo inocente, no qual ocorriam recessões periódicas e crises financeiras periódicas, mas nunca as duas juntas. Ou seja, pensava-se que estávamos vacinados contra crises globais do tipo da Grande Depressão. Vemos agora que não é bem assim. Uma crise de demanda sem a ocorrência simultânea de uma crise financeira pode ser revertida com adequadas políticas monetárias, mediante uma redução consistente da taxa de juros básica. Uma crise financeira podia ser revertida em sua própria órbita, sem comprometimento fiscal. As duas juntas não aconteciam desde os anos 30. O que é melhor fazer quando acontecem?
A melhor maneira de compreender isso é pela lente de um notável economista americano do século passado, Abba Lerner, autor da teoria das Finanças Funcionais. Lerner, embora keynesiano, abandonou a trilha das especulações de Keynes para explicar flutuações cíclicas na base de expectativas subjetivas dos empresários e seguiu o caminho da identificação de interações objetivas entre o setor privado e o setor público, tanto na esfera monetária e financeira quanto na esfera real, no sentido sobretudo de apontar o caminho da recuperação nas crises.
Uma crise de demanda, objetivamente, supõe elevados estoques e reduzida propensão a investir do empresariado. O investimento cai, mas não a disponibilidade de recursos por parte de muitas empresas. Elas tendem a entesourá-los sob alguma forma, em lugar de aplicar produtivamente. Em consequência, o desemprego aumenta, realimentando a queda da demanda. O sistema não tem como recuperar-se a partir de sua própria órbita, pois, para investir, é necessário haver um aumento esperado da demanda. E para a demanda aumentar, é preciso haver investimento.
Como ninguém é capaz de levantar-se do chão puxando-se pelo próprio cabelo, é preciso que haja a intervenção de uma força externa ao setor privado para empurrar uma economia em crise de demanda. Essa força é o Estado. Tomando emprestado o dinheiro parado nos caixas das empresas superavitárias, mediante o lançamento de títulos públicos, o Estado pode investi-los na compra de serviços públicos e de grandes obras públicas, criando empregos e estimulando a demanda, e, finalmente, incentivando o próprio investimento privado, fomentando um círculo virtuoso de emprego, demanda e investimento.
É de notar-se que, de um ponto de vista funcional, não basta um aumento do investimento público. É preciso que seja um investimento deficitário. Um investimento financiado por tributos estará retirando recursos do setor privado na mesma proporção em que os está injetando, sem efeito na demanda global. Portanto, o déficit público não é um "mal" tolerável, mas um recurso funcional necessário.
A consequência óbvia é o aumento da dívida pública. Em que medida isso representa uma carga insuportável para as gerações futuras? Em nada. A verdadeira carga insuportável recai sobre a geração presente na ausência do déficit, sob a forma de alta intolerável do desemprego e da queda da demanda. Além disso, vê-se o gasto público apenas do lado do passivo, não do ativo: obras de infraestrutura e serviços de educação e de saúde constituem uma base de produtividade e de bem-estar social para as gerações futuras, ao mesmo tempo em que aliviam os ônus da crise no presente.
Do ponto de vista financeiro, o déficit também se paga, desde que haja efetiva recuperação. Com o aumento do produto e da renda, a receita tributária se eleva sem aumento de carga, sendo que, do lado monetário, a expansão da economia requer expansão também de sua base, liberando receita de senhoriagem para o setor público. Tudo isso faz com que, em poucos anos de recuperação, o déficit se reduza ou seja eliminando, possibilitando gradual redução da dívida pública em relação ao PIB, numa atmosfera de crescimento auto-sustentável e sem ônus social.
Seria o caso de se pensar que todo déficit público deve ser encarado como bom para a economia? Claro que não. É preciso que ao déficit corresponda um gasto que eleve gradualmente a produtividade e a base de bem estar da sociedade. Além disso, ninguém de bom senso iria aprovar aumentos de dívida pública do tipo que aconteceu no governo Fernando Henrique, quando ela dobrou de cerca de 30% do PIB para quase 60%, sem qualquer investimento relevante em contrapartida. Esse foi um aumento criminoso da dívida, puxado exclusivamente por aumento de juros, além de paralelo a um dos mais amplos programas de privatização do planeta.
E o que dirão as agências de risco sobre um eventual aumento da dívida pública brasileira como consequência de um vigoroso programa de estímulo à demanda para enfrentar a crise? Bem, as agências ficarão muito ocupadas com a União Europeia, que está estourando todos os parâmetros do Tratado de Maastricht e do Pacto de Estabilidade e Crescimento que criou o euro (máximo de 3% do PIB do déficit e de 60% da dívida), com o Japão, cuja dívida vai para 205% do PIB, com a Inglaterra, com déficit de quase 10%, e com os próprios Estados Unidos (12,3% do PIB). Sem falar, obviamente, nos riscos que elas não viram no Lehman Brothers, no Bank of América e no Citi!
José Carlos de Assis é economista e professor, presidente do Instituto Desemprego Zero.
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