O período que vivi na Finlândia, um dos bastiões do Estado de bem-estar social europeu, rendeu-me um punhado de reflexões a respeito de dignidade humana, acesso a bens públicos, aparato burocrático-estatal, pensamento crítico, e por aí vai. Meu referencial brasileiro sobre desenvolvimento econômico e justiça social eram permanentemente surpreendidos por uma formatação social que, por mais que a conhecesse teoricamente, saltava aos olhos e comovia o coração. Das manifestações estudantis para que estrangeiros não paguem taxas nas universidades públicas, passando pela importante uniformidade salarial, política de migração digna, auxílio-desemprego e acesso livre aos bens públicos (gratuitos ou quase), a sensação era de forte preocupação com a dignidade humana. Parece um Estado montado sob a lógica de servir quem ali mora, e não de se retro-alimentar para perpetuação de sua própria lógica interna.
O Estado de bem-estar do norte europeu não elimina as contradições de classe e nem a questão fundamental sobre quem detém os meios de produção, mas tenta amenizá-las por meio da tributação (redistribuindo a renda) e ao eliminar relações sociais caracterizadas pela superexploração do trabalho. Do ponto de vista histórico, muito desse Estado deve-se à URSS, vizinha de fronteira dos finlandeses. No pós-Segunda Guerra, a alternativa era equalizar ou socializar. Em períodos contemporâneos de consenso neoliberal, o desafio dos nórdicos todos é definir como manter seus ganhos sociais livres do desmonte global e, ao mesmo tempo, não estagnar.
Nessas comparações constantes que fazia com relação ao Brasil, uma das mais importantes refere-se ao nosso padrão de remuneração do trabalho. Os autores clássicos do desenvolvimento econômico enfatizam que a debilidade estrutural do subdesenvolvimento (brasileiro ou não só) está na formação de uma estrutura dual, que mantém de um lado um setor moderno, com relações capitalistas estabelecidas (do setor financeiro e industrial ao agro-exportador), convivendo com um setor atrasado, caracterizado pela informalidade, baixa produtividade e relações de trabalho precárias (dos camelôs da cidade ao cortador de cana no nordeste). E que os baixos salários no setor moderno devem-se à existência de um excedente “ilimitado” de mão-de-obra no setor atrasado, e, portanto, o desenvolvimento passa necessariamente pela modernização deste último, por meio de aumento de produtividade e melhora desses salários.
É sobre isso que trata a crônica “Vida Longa ao Subdesenvolvimento” que compartilho com os leitores do blog.
Uma presença estatal tão forte, no entanto, não vem sem custos. Ou melhor, sem controles. Um exemplo: uma das obrigatoriedades para ter acesso ilimitado à rede de proteção social é fazer pré-natal e levar o recém-nascido uma vez a cada quinze dias ao posto de saúde mais próximo. Esse acompanhamento dura até a adolescência, claro que com regularidade reduzida, e serve não só para garantir os cuidados básicos de vacinação e medicina preventiva, como para oferecer apoio nutricional e psicológico às crianças. É curioso, no entanto, acompanhar os dramas dos pais quando seus filhos estão “fora da curva” de crescimento natural para idade. Mesmo os casais baixinhos ficam intrigados, se perguntando em qual fase da alimentação eles erraram a fim de manter o bebê abaixo da “curva natural”. Ou então escutamos mães reclamando da pressão das enfermeiras do posto que souberam que, mesmo com todo o suporte do Estado, a mulher quer voltar a trabalhar agora que o filho completou um ou dois anos. O posto de saúde prega que mães que retornam ao trabalho antes do filho completar três anos de idade podem causar danos psicológicos à criança.
São numerosos os controles sociais e morais, incorporados às instâncias do Estado – um Estado que, pasmem, não é laico, mas luterano. O que me intriga na observação do caso finlandês é por que tal nível de bem-estar e educação formal não levou à expansão da capacidade crítica de seus cidadãos. É isso que me pergunto na segunda crônica, “Brave Cold World”, que igualmente compartilho.
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