terça-feira, 14 de julho de 2009

Réquiem para a reforma agrária

Se o presidente Lula não vetar a lei que dá nova disciplina jurídica aos índices de produtividade dos imóveis rurais, quem ainda falar em reforma agrária estará dando a si próprio um atestado de sandice.

Índices de produtividade são medidas da eficiência no uso das terras de uma fazenda. Foram introduzidos na legislação agrária por força da Constituição de 1988 e são elementos decisivos para classificar como produtivo ou improdutivo um imóvel rural objeto de desapropriação - somente os desta categoria podem ser desapropriados para fins de reforma agrária.
A lei que disciplinou o preceito constitucional atribui aos ministros do Desenvolvimento Agrário e da Agricultura a competência para assinar uma Instrução ministerial conjunta fixando periodicamente esses índices.
A Instrução atualmente em vigência está defasada em mais de três décadas! No Brasil, como se sabe, há leis que se acatam, mas não se cumprem.
No governo FHC, o ministro Jungmann encomendou a duas instituições especializadas estudos técnicos para atualizar os índices, sem mencionar a cada uma delas o que a outra estava fazendo. O resultado foi a coincidência quase absoluta dos resultados. Nem assim a Instrução atualizadora foi assinada.
Lula herdou essa situação e teve que avocar a decisão sobre publicá-la ou não ao seu despacho porque o ministro da Agricultura negou-se a assinar o texto que lhe enviou o ministro do Desenvolvimento Agrário. Para não desagradar a bancada ruralista manteve a Instrução guardada em sua gaveta, apesar dos apelos do MST.
Sem novos índices, não há mais fazendas improdutivas nas regiões efetivamente ocupadas pela exploração agropecuária e florestal.
Mas o agronegócio, que é previdente, não quer ficar na mão de governo algum e apresentou o projeto de lei aprovado nesta semana em virtude de um "cochilo" da bancada governista.
Se o Lula sancioná-lo, a reforma agrária, que já está agonizante, morrerá de vez, pois o projeto aprovado exige que a atualização dos Índices seja feita periodicamente por uma lei do Congresso – garantia de que jamais uma atualização verdadeira será aprovada.
Porém, seguindo a mesma tática da Medida Provisória da "legalização da grilagem" – já comentada nesta coluna -, o Projeto contém um "bode".
Para descobri-lo, é preciso recorrer a um exemplo: a classificação de uma fazenda como produtiva (não suscetível de desapropriação) é feita por meio da aplicação de dois índices: um mede o uso da terra; outro, a eficiência na exploração da terra utilizada.
Assim: pela lei atual, uma fazenda que tem 10.000 hectares e só cultiva 1.000 hectares, mas apresenta um índice de produtividade (quantidade de produção por hectare) igual ou superior à média do país na área cultivada, poderá ser desapropriada por não usar suas terras de acordo com a média do país, apesar de ser bastante eficiente nas terras que cultiva.
O projeto aprovado abole o primeiro índice, de modo que um imóvel com essas características escapa da desapropriação.
Não é difícil prever o que vai acontecer: Lula vetará esse artigo. Em outras palavras: retirará o "bode" do projeto.
Os lulistas, aliviados, passarão a defender a lei, porque afinal ela não contém mais o que seria perigoso para a reforma agrária.
A bancada ruralista, para não dar muito na vista, ensaiará um simulacro de protesto. Mas ela está radiante porque seu principal objetivo – transferir a competência da atualização dos índices para uma instância absolutamente segura como o Congresso – foi plenamente atingido.
O povo que tem voz na política não dirá nada, pois uma parte é conivente com o golpe e outra parte, embora indignada, encontra-se dividida, confusa e, por isso, sem condições de agir.
O povo que não tem voz na política... esse não dirá nada, porque uma parte dele está inebriada pela ilusão de consumismo que o Bolsa Família propicia e a outra parte encontra-se em estado de absoluta prostração.
Quisque tandem!

Por Plinio de Arruda Sampaio, originalmente publicado no Correio da Cidadania

Plinio de Arruda Sampaio, de 78 anos, é advogado, presidente da Abra (Associação Brasileira de Reforma Agrária) e diretor do "Correio da Cidadania". Foi deputado federal pelo PT-SP (1985-91) e consultor da FAO (Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação).

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