Reproduzimos em III partes a entrevista publicada pelo Jornal de Fato com Ubiratan de Souza. Economista graduado na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Bira, como é conhecido, integrou a luta armada durante a ditadura militar na Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) ao lado do capitão Carlos Lamarca, participou ativamente durante toda sua trajetória política das lutas da esquerda socialista de forma ativa e internacionalista, tendo contribuido para a construção do Partido dos Trabalhadores e integrado os governos petistas no Rio Grande do Sul. Também foi um dos coordenadores da implementação do Orçamento Participativo em Porto Alegre e no Estado do Rio Grande do Sul no governo de Olívio Dutra (1999-2003).
MEMÓRIA Na opinião de Ubiratan de Souza, que lutou ao lado de Carlos Lamarca contra o regime militar, repressão existe até hoje e os trabalhadores precisam contar o que verdadeiramente aconteceu para que se possa construir uma sociedade mais justa e igualitária.EM ENTREVISTA, o economista e ex-guerrilheiro da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), Ubiratan de Souza, o “Gregório”, conta sua história de militância, a tortura, o exílio e a perseguição logo após o golpe no Chile. Também avalia a insistência da direita, como no episódio em que a Folha de S. Paulo classificou o regime militar como “ditabranda”, em não reconhecer a ditadura militar e a negativa em julgar os torturadores.
Brasil de Fato – Como iniciou tua militância?
Ubiratan de Souza – Eu estava com 17 anos em Cachoeira do Sul [RS] quando concorremos ao grêmio estudantil em 1967, em plena ditadura. A nossa chapa defendia a autodeterminação dos povos (estávamos em plena Guerra do Vietnã, então defendíamos que não podia haver intervenção norteamericana), era contra o acordo MEC-USAID [reforma educacional no Brasil acordada entre o Ministério da Educação e o governo dos Estados Unidos que visava transferir recursos para escolas privadas em detrimento do ensino público], além de empunhar bandeiras de liberdade democrática contra o regime. A nossa chapa foi interditada e não pôde concorrer.
Ainda fomos suspensos por dois dias no colégio. Esse foi o primeiro embate contra a ditadura.
Depois, vim para Porto Alegre. Cursei o último ano do científico e fiz o vestibular para a Universidade Federal do Rio Grande do Sul [UFRGS]. Passei e me incorporei ao movimento estudantil justamente em 1968, que é um ano emblemático não somente pela nossa luta estudantil, mas também pelas greves operárias em Osasco (SP) e Contagem (MG), pela passeata dos 100 mil no Rio de Janeiro, pelo Maio de 68 na França, pelo assassinato de Che Guevera na Bolívia [1967], pela morte do estudante Edson Luis no restaurante Calabouço [no Rio de Janeiro]... Nossa luta tinha um enfoque no movimento estudantil contra a ditadura e a sua política, como a reforma universitária, mas ao mesmo tempo estávamos combinados com as demais manifestações.
Ubiratan de Souza – Eu estava com 17 anos em Cachoeira do Sul [RS] quando concorremos ao grêmio estudantil em 1967, em plena ditadura. A nossa chapa defendia a autodeterminação dos povos (estávamos em plena Guerra do Vietnã, então defendíamos que não podia haver intervenção norteamericana), era contra o acordo MEC-USAID [reforma educacional no Brasil acordada entre o Ministério da Educação e o governo dos Estados Unidos que visava transferir recursos para escolas privadas em detrimento do ensino público], além de empunhar bandeiras de liberdade democrática contra o regime. A nossa chapa foi interditada e não pôde concorrer.
Ainda fomos suspensos por dois dias no colégio. Esse foi o primeiro embate contra a ditadura.
Depois, vim para Porto Alegre. Cursei o último ano do científico e fiz o vestibular para a Universidade Federal do Rio Grande do Sul [UFRGS]. Passei e me incorporei ao movimento estudantil justamente em 1968, que é um ano emblemático não somente pela nossa luta estudantil, mas também pelas greves operárias em Osasco (SP) e Contagem (MG), pela passeata dos 100 mil no Rio de Janeiro, pelo Maio de 68 na França, pelo assassinato de Che Guevera na Bolívia [1967], pela morte do estudante Edson Luis no restaurante Calabouço [no Rio de Janeiro]... Nossa luta tinha um enfoque no movimento estudantil contra a ditadura e a sua política, como a reforma universitária, mas ao mesmo tempo estávamos combinados com as demais manifestações.
Como se deu a militância com o recrudescimento da repressão em 1968?
Em dezembro de 1968 foi promulgado o Ato Institucional nº 5 [AI-5], que é o golpe dentro do golpe. Ficou proibido qualquer tipo de manifestação; a repressão – tanto o Dops [Departamento de Ordem Política e Social] quanto os demais organismos militares que se formaram depois, como o DOICodi [Destacamento de Operações de Informações - Centro de Operações de Defesa Interna] – podiam entrar na casa de qualquer cidadão brasileiro e prender; a tortura foi institucionalizada, as pessoas eram presas e torturadas e não havia nenhuma proteção e nem o habeas corpus. O AI-5 dá o último fechamento à ditadura, depois do grande movimento de massas. E, para aqueles que tinham o ideal de justiça, liberdade, democracia e de buscar uma nova sociedade, não havia outra alternativa, à medida que começaram a ser perseguidos, que não fosse entrar na clandestinidade. E naquela época tu eras perseguido por qualquer motivo.
Se tu eras estudante e te manifestavas em sala de aula com uma opinião, tu já podias ser preso pelo Dops na saída da sala. Se tu eras professor e explanasses alguma reflexão, muitas vezes somente histórica, eras preso, fichado e passavas a ser perseguido. Então, naquele momento fiz a opção de entrar na clandestinidade. Entrei na luta de resistência contra a ditadura, na luta armada, que passou a ser uma legítima defesa daqueles que lutam por liberdade e democracia dentro de um país em que não se tinha mais direito a nada.
Em dezembro de 1968 foi promulgado o Ato Institucional nº 5 [AI-5], que é o golpe dentro do golpe. Ficou proibido qualquer tipo de manifestação; a repressão – tanto o Dops [Departamento de Ordem Política e Social] quanto os demais organismos militares que se formaram depois, como o DOICodi [Destacamento de Operações de Informações - Centro de Operações de Defesa Interna] – podiam entrar na casa de qualquer cidadão brasileiro e prender; a tortura foi institucionalizada, as pessoas eram presas e torturadas e não havia nenhuma proteção e nem o habeas corpus. O AI-5 dá o último fechamento à ditadura, depois do grande movimento de massas. E, para aqueles que tinham o ideal de justiça, liberdade, democracia e de buscar uma nova sociedade, não havia outra alternativa, à medida que começaram a ser perseguidos, que não fosse entrar na clandestinidade. E naquela época tu eras perseguido por qualquer motivo.
Se tu eras estudante e te manifestavas em sala de aula com uma opinião, tu já podias ser preso pelo Dops na saída da sala. Se tu eras professor e explanasses alguma reflexão, muitas vezes somente histórica, eras preso, fichado e passavas a ser perseguido. Então, naquele momento fiz a opção de entrar na clandestinidade. Entrei na luta de resistência contra a ditadura, na luta armada, que passou a ser uma legítima defesa daqueles que lutam por liberdade e democracia dentro de um país em que não se tinha mais direito a nada.
"E não havia outra alternativa que não fosse entrar na clandestinidade"
Como foi esse processo?
Entrei na Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), que era comandada pelo capitão Carlos Lamarca. Entrei aqui no Rio Grande do Sul e depois tive o privilégio de conhecê-lo porque fui para o Vale do Ribeira, na Serra do Mar, onde funcionava um campo de treinamento da VPR. Treinar no Brasil evitava que tivéssemos que fazer isso no exterior, correndo o risco de ser preso, e também ajudava a não perdermos a noção da realidade brasileira. No Vale do Ribeira, encontrei o capitão Lamarca e lá tivemos um treinamento guerrilheiro. Eu já tinha tido também uma formação quando prestei serviço militar obrigatório no Exército. Na Serra, nem palmiteiro entrava; a cidade mais próxima era Registro (SP). Tínhamos uma base de apoio em um sítio no pé da montanha, mas a gente se embrenhava na mata. Nesse período, praticamente 70% da população viviam no campo. Então nossa pauta era a luta contra a ditadura a partir da guerrilha
rural. Esse treinamento na zona rural era também para estabelecer bases.
Meses depois a zona foi cercada pelo Exército e tivemos que sair da região. Éramos 18 guerrilheiros; mesmo assim, furamos o cerco de 20 mil soldados e nos espalhamos, alguns vieram para o Rio Grande do Sul e outros para São Paulo e Rio. Eu vim para cá e depois voltei a São Paulo, onde continuei a militância entre 1969 e 1970. Fiquei na zona urbana, onde fazíamos a luta de propaganda armada; vivíamos de expropriações, na medida em que ninguém podia trabalhar já que estávamos sendo todos perseguidos. Tivemos uma atuação tanto política como de ações no sentido de acumular força na cidade para depois voltar ao campo. Naquela época, a tortura aumentou em todos os órgãos de repressão – nos Dops regionais e no DOI-Codi, que era o organismo liderado pelo Exército.
Entrei na Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), que era comandada pelo capitão Carlos Lamarca. Entrei aqui no Rio Grande do Sul e depois tive o privilégio de conhecê-lo porque fui para o Vale do Ribeira, na Serra do Mar, onde funcionava um campo de treinamento da VPR. Treinar no Brasil evitava que tivéssemos que fazer isso no exterior, correndo o risco de ser preso, e também ajudava a não perdermos a noção da realidade brasileira. No Vale do Ribeira, encontrei o capitão Lamarca e lá tivemos um treinamento guerrilheiro. Eu já tinha tido também uma formação quando prestei serviço militar obrigatório no Exército. Na Serra, nem palmiteiro entrava; a cidade mais próxima era Registro (SP). Tínhamos uma base de apoio em um sítio no pé da montanha, mas a gente se embrenhava na mata. Nesse período, praticamente 70% da população viviam no campo. Então nossa pauta era a luta contra a ditadura a partir da guerrilha
rural. Esse treinamento na zona rural era também para estabelecer bases.
Meses depois a zona foi cercada pelo Exército e tivemos que sair da região. Éramos 18 guerrilheiros; mesmo assim, furamos o cerco de 20 mil soldados e nos espalhamos, alguns vieram para o Rio Grande do Sul e outros para São Paulo e Rio. Eu vim para cá e depois voltei a São Paulo, onde continuei a militância entre 1969 e 1970. Fiquei na zona urbana, onde fazíamos a luta de propaganda armada; vivíamos de expropriações, na medida em que ninguém podia trabalhar já que estávamos sendo todos perseguidos. Tivemos uma atuação tanto política como de ações no sentido de acumular força na cidade para depois voltar ao campo. Naquela época, a tortura aumentou em todos os órgãos de repressão – nos Dops regionais e no DOI-Codi, que era o organismo liderado pelo Exército.
"Mesmo em um ambiente desses ocorrem gestos de solidariedade. Os torturadores não podem controlar todas as pessoas"
Quando foste preso e que lembranças tens da repressão?
Fui preso em outubro de 1970 em uma rua durante uma batida da Operação Bandeirantes (Oban) e levado ao DOI-Codi. Tinha uma delegacia de polícia na fachada e atrás era o DOI-Codi, com celas que ficavam no pátio, e um sobradinho, onde éramos torturados. Sofri tortura com pau-de-arara (onde te botavam de cabeça para baixo pendurado em uma barra de ferro em um cavalete com as mãos e os pés amarrados) e choque elétrico. Me tiravam do pau-de-arara e me colocavam direto na cadeira do dragão (era uma cadeira de metal onde a pessoa ficava sentada e amarrada sem roupa, e com um fio elétrico davam choque). Também tinha palmatória nas mãos e nas pernas. Nos dois primeiros dias de prisão não “baixei” para cela, fiquei somente sendo torturado. E eles iam até a madrugada; somente paravam de torturar quando cansavam. Depois, quando me colocaram na cela, uma vez por dia ainda me levavam para a tortura. Eu estava como desaparecido. Consegui avisar a minha família por meio de uns meninos que acho que foram presos por engano. Pouco antes de serem soltos, consegui repassar um bilhete com o telefone de minha família em Porto Alegre para que avisassem. A minha família foi até São Paulo e os militares negaram que eu estava preso. Meu pai chegou a ir na Oban e se comunicou com um policial que ficava na guarita, em frente à delegacia; deu o meu nome e pediu para que me entregasse uma barra de chocolate. À noite, o guarda foi até a cela onde eu estava preso, avisou que o meu pai esteve ali e me deixou o chocolate. O policial não participava das equipes de tortura e nem de captura; ele estava ali apenas como vigia. Mesmo em um ambiente desses ocorrem gestos de solidariedade. Os torturadores não podem controlar todas as pessoas.
Fui preso em outubro de 1970 em uma rua durante uma batida da Operação Bandeirantes (Oban) e levado ao DOI-Codi. Tinha uma delegacia de polícia na fachada e atrás era o DOI-Codi, com celas que ficavam no pátio, e um sobradinho, onde éramos torturados. Sofri tortura com pau-de-arara (onde te botavam de cabeça para baixo pendurado em uma barra de ferro em um cavalete com as mãos e os pés amarrados) e choque elétrico. Me tiravam do pau-de-arara e me colocavam direto na cadeira do dragão (era uma cadeira de metal onde a pessoa ficava sentada e amarrada sem roupa, e com um fio elétrico davam choque). Também tinha palmatória nas mãos e nas pernas. Nos dois primeiros dias de prisão não “baixei” para cela, fiquei somente sendo torturado. E eles iam até a madrugada; somente paravam de torturar quando cansavam. Depois, quando me colocaram na cela, uma vez por dia ainda me levavam para a tortura. Eu estava como desaparecido. Consegui avisar a minha família por meio de uns meninos que acho que foram presos por engano. Pouco antes de serem soltos, consegui repassar um bilhete com o telefone de minha família em Porto Alegre para que avisassem. A minha família foi até São Paulo e os militares negaram que eu estava preso. Meu pai chegou a ir na Oban e se comunicou com um policial que ficava na guarita, em frente à delegacia; deu o meu nome e pediu para que me entregasse uma barra de chocolate. À noite, o guarda foi até a cela onde eu estava preso, avisou que o meu pai esteve ali e me deixou o chocolate. O policial não participava das equipes de tortura e nem de captura; ele estava ali apenas como vigia. Mesmo em um ambiente desses ocorrem gestos de solidariedade. Os torturadores não podem controlar todas as pessoas.
Tiveste algum contato com o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra?
Na época em que fui preso no DOI-Codi, ele era o comandante da Operação Bandeirantes. Ele comandava as três equipes de tortura da Oban, pois cada dia era realizada por uma equipe diferente. A mim ele não torturou, mas entrou durante as sessões em que estive para comandar a tortura. Entrava, mandava parar, conversava com os torturadores e depois, quando ele saía, a tortura recomeçava. Inclusive, fazia o comentário de que, se eu não falasse, a tortura iria continuar.
Na época em que fui preso no DOI-Codi, ele era o comandante da Operação Bandeirantes. Ele comandava as três equipes de tortura da Oban, pois cada dia era realizada por uma equipe diferente. A mim ele não torturou, mas entrou durante as sessões em que estive para comandar a tortura. Entrava, mandava parar, conversava com os torturadores e depois, quando ele saía, a tortura recomeçava. Inclusive, fazia o comentário de que, se eu não falasse, a tortura iria continuar.
Ficaste com alguma sequela?
Não fiquei com nenhuma sequela física e nem psicológica porque tinha convicção de que lutava contra a ditadura, que eu estava ali por minha opção. Entrei na luta armada com praticamente 18 anos, fui preso aos 21. Quando eu estava sendo torturado, a pior coisa da tortura era sentir a dor. Não tinha medo de morrer. E pensava que, se morresse, outras gerações iriam continuar a luta. Não há outra maneira de viver se não for lutando por justiça e liberdade.
2 comentários:
Boa essa, "não havia outra alternativa senão entrar na clandestinidade e fazer a luta armada". Muita gente percorreu outros caminhos mais existosos e menos violento e que levaram ao fim da ditadura. A ditadura, na verdade, utilizou do radicalismo simplório de certa esquerda para mostrar sua cara perversa e autoritária. O que adiantou ter sequestrado embaixadores? Absolutamente nada. Apenas ajudou a endurescer o regime.
Porque de certo modo sempre irá exisitir pessoas que negam a ditadura? Porque certamente, de um modo ou de outro, a ditadura favoreceu este tipo de gente, com seus interesses individualistas. A democracia fundada em raizes socialistas certamente incomoda muito este tipo de gente, pois faz com que elas saiam do seu aconchego covarde, de sua poltrona na frente da TV, do seu estado inerte. Viva a democracia, viva o socialismo, pois a vida nada mais é do que uma constante revolução! Graças a muitas pessoas hoje podemos estar aqui conversando e opinando de forma aberta e franca. Foi necessário demonstrar resistência a medida que o regime ditatorial no país flexibilizasse todos os direitos e garantias dos cidadãos, outorgando direitos e garantias somente aos seus favoritos. Por isso sequestrar embaixadores, e outras práticas guerrilheiras foram necessárias, por uma simples e única vontade, a resistência as injustiças cometidas, as mortes e as atrocidades envolvidas. Viva a democracia, viva o socialismo democrático e a vitória do povo brasileiro!
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